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Sala de Jantar

As minhas receitas, as receitas de outros e umas deambulações pela gastronomia. Sabores com memória, sabores para partilhar.

Sala de Jantar

As minhas receitas, as receitas de outros e umas deambulações pela gastronomia. Sabores com memória, sabores para partilhar.

Sabores Sintrenses em versão Gourmet

Maurício Barra, 03.03.14

 

 

Por vezes somos surpreendidos mesmo à porta de casa.

A surpresa encontrei-a na EPAV (Escola Profissional Alda Brandão de Vasconcelos, estabelecimento de ensino profissional que leva o nome da filha do médico, agricultor, deputado e dirigente associativo António Brandão de Vasconcelos, famoso no primeiro terço do século passado, por ser uma mistura de João Semana das famílias pobres da freguesia, benfeitor atento aos problemas da terra e empreendedor de sucesso, que em herança estipulou a criação de uma escola agrícola para instrução dos jovens destas terras do extremo da serra de Sintra, para que a agricultura local e a Adega Regional de Colares, que fundou, não finasse por falta de técnicos capazes).

Mantendo os ensinos agrícolas que lhe granjearam fama, onde aliam o ensino teórico e a prática do mesmo na quinta agrícola de que é proprietária, com o decorrer dos anos alargaram o âmbito dos cursos técnicos que ofereciam, entrando em diversas valências, das quais hoje quero destacar as relacionadas com os cursos profissionais de hotelaria. Com destaque para os cursos de Restaurante e Bar, e Cozinha e Pastelaria.

Para o efeito criaram um hotel-escola, no qual os alunos demonstram factualmente, com clientes e convidados, os resultados da sua formação. E foi num destes jantares de prática, para o qual fui um dos convidados, assim como a Confraria dos Sabores Sintrenses, que me caiu no prato a melhor surpresa que, para quem é amador da gastronomia, pode encontrar: criatividade, profissionalismo e alta qualidade numa ementa de que todos nós conhecíamos o bilhete de identidade.

 

Eis a ementa sobre o tema Sabores Sintrenses:

 

Entradas

Açorda de Alho

Mexilhão de Cebolada com Pezinhos de Leitão

 

Pratos Quentes

Polvo Cozido com Batata Torneada e Grelos

Pargo com Caldeirada

Carne de Porco das Mercês

Vitela à Sintrense com Favas

Leitão Assado com Batata Crocante

 

Sobremesas

Nozes Douradas de Galamares

Queijadas de Sintra

Travesseiro de Sintra

Fofo de Belas

Nata de Mação

 

Sobre o repasto, eis as minhas notas.

Após um amouse bouche do chef,  hors d’oeuvre do que viria a seguir,  começar a refeição pela tão esquecida açorda de alho saloia, um simplicíssimo caldo de água e alho estalado em azeite que embebe fatias do nosso bom pão saloio, foi uma decisão informada e  acertada . A tradição de começar os jantares por um consommé é a melhor forma de predispor e preparar a digestão de uma refeição no ocaso do dia.

Nos pezinhos de leitão com o mexilhão de cebolada, a junção da untuosidade dos extremos porcinos com o sabor a mar dos moluscos bivalves foi uma surpresa inesperada: entranhou-se logo de tal forma que já nem deu tempo para estranhar-se.

O polvo cumpriu os termos da regra, o pargo com caldeirada, com esta armada em su sítio, estava excelente, enfatizando a alta qualidade e fibra do bossudo e rosado “Pagrus pagrus” tão tradicional neste litoral.

A carne de porco das mercês foi o que tinha de ser, sem estar acolitada pela desnecessária fritalhada de batatas ( a receita original é só a carne devidamente confeccionada com pão saloio a acompanhar ), assim como o leitão, na versão de Negrais ( receita com tradição de mais de 150 anos, conforme me elucidaram quando questionei sobre a ancestralidade desta confecção em terras sintrenses ).

A vitela é que não foi a que eu esperaria. A recomposição, feita com qualidade e associando bem os ingredientes a que se propunha, desconstruiu a tradicional vitela assada de Sintra (uma confecção prima da vitela de Lafões e da alcatra açoriana), não se encontrando nesta versão a memória de um sabor conhecido.

Para as sobremesas estava guardada uma última surpresa. A acompanhar exemplares das referências mais fortes da gastronomia sintrense, fomos presenteados com a Nata de Maçã, uma criação da equipa de pastelaria da EPAV, com patente já registada e que, digo eu, quando começar a ser comercializada, vai ser um sucesso garantido. É superlativa. Só quando tiverem oportunidade de provar uma é que vão perceber o que agora afirmo.

O vinho servido foi o Chão Rijo reserva, do amigo José Baeta da Adega Viúva Gomes de Almoçageme, tendo o líquido de Baco assistido a toda a refeição com galhardia e agradáveis encores.

 

Confeccionada e servida à mesa pelos alunos do último ano do curso profissional, sob direcção dos respectivos chefes/professores de Cozinha, Pastelaria e Restaurante, a prova foi amplamente aprovada, com sentida aclamação às respectivas equipas no termo da refeição, num agradecimento ao trabalho feito que reflecte a qualidade exemplar de uma boa escola profissional que orgulha os colarenses.

Como se diz por aqui, enquanto “os outros ainda estão a ir, já estes estão a vir “.

 

 

 

  

 

1865 Um curioso Roteiro de Viajante de Lisboa

Maurício Barra, 18.10.13

 

 

 

 

 

Editado em Lisboa em 1865, este Roteiro do Viajante em Lisboa dá uma lista exaustiva do alojamento disponível na capital em meados do século XIX.

O termo viajante  define a época: ainda não havia turistas no sentido em que o conhecemos hoje. Naquele tempo não se ia rapidamente a lado nenhum. Não havia estradas asfaltadas,  os transportes eram de tracção animal, deslocar-se exigia haver familiares ou conhecidos no destino que suprissem alojamento. Ou quem recomendassem casas que os pudessem alojar. As deslocações eram custosas, demoradas, as estadias raramente eram breves. As famílias deslocavam-se muitas vezes com amas e criados, as malas que transportavam consigo estavam de acordo com o período da viagem ( por exemplo, os primeiros hotéis construídos no Monte Estoril tinham um sótão onde ficavam alojados os empregados das famílias que hospedavam ).

Em 1865 havia em Lisboa vinte e seis - eu ia dizer hotéis, mas o conceito então, sem legislação aplicável, tinha uma larga latitude - unidades de alojamento com áreas públicas comuns ( o Bragança permanece e aparece mais tarde nos livros de Eça ), e oito Hospedarias, as quais, presumo, serviriam para dormir e pouco mais.

Havia oito Restaurantes e Casas de Pasto, mas o autor recomenda a Taberna Ingleza, pelo seu asseio e serviço à inglesa, ou seja, alguém, vindo de servir na copa da mansão de algum membro da corte ou de algum burguês mais abastado, percebeu que servir os clientes à mesa com criado de libré, segurando a  travessa pelo lado direito do hóspede, era o requinte que faria a diferença. Diz também o autor, a quem o lê, que não se envergonhe de frequentar as ditas Casas de Pasto, pois lá encontrará gente de "colarinhos primorosamente engomados"  que entram "pela porta dos envergonhados", ou seja, pela porta de serviço das traseiras. Isto treslido dá a entender que a frequência destas casas seria um pouco "afadistada".

Recomenda ainda, o referido roteiro,  cinco Cafés. Felizmente, um deles ainda existe -  o Martinho  - e outro "fez" literatura e um dos melhores bifes de Lisboa , o Marrare.

Refere ainda três Estabelecimentos de Banhos. Só recomenda um. Ainda bem, porque um dos outros, o de Rilhafoles, para os lisboetas ressoa a maluqueira.

Por último, o ditoso autor faz recomendações às famílias que venham da província a Lisboa : por favor, não se alojem nos Hotéis nem nas Hospedarias. Aluguem casas particulares, porque há muitas, e assim evitam "poupar-se a muitos desgostos "

 

 

Post Scriptum

Escreve-se viagem ou viajem ?

Pois bem, os dois termos estão correctos. A sua aplicação é que tem nuances.

Ora vejam :

« As duas palavras existem na língua portuguesa e estão corretas. A palavra viagem é um substantivo comum, sinónimo de jornada e deslocamento. Viajem é a forma do verbo viajar conjugada na 3ª pessoa do plural do presente do subjuntivo ou na 3ª pessoa do plural do imperativo. Viajar se refere, principalmente, ao ato de se deslocar, passear, transitar, visitar.

Assim, se estamos falando de uma jornada, de um passeio para um determinado lugar, de um deslocamento de alguém de um ponto mais próximo para um ponto mais distante, devemos utilizar o substantivo comum viagem. Esta palavra pode ser ainda uma gíria que significa uma experiência de alterações sensoriais provocadas por substâncias alucinogénias. Viagem tem sua origem no provençal viatge, pelo latim viaticu. Deve ser escrita com g por causa de uma regra da língua portuguesa que afirma que os substantivos terminados em –agem, - igem, -ugem são escritos com g: viagem, passagem, imagem, origem, vertigem, ferrugem, penugem.

 

Se estivermos falando do verbo viajar conjugado na 3ª pessoa do plural do presente do subjuntivo ou na 3ª pessoa do plural do imperativo, devemos utilizar viajem. O verbo viajar é formado a partir do substantivo viagem mais o sufixo verbal –ar, sendo escrito com j para manter a sonoridade. Viajar se refere ao ato de se deslocar de um lugar para outro, de percorrer caminhos, de visitar países e cidades. Pode significar também o ato de ter alucinações, delirar, sonhar, imaginar.

Conforme as regras ortográficas da língua portuguesa, devemos escrever com j todas as formas verbais dos verbos terminados em –jar: viajar (viajo, viajas, viaja, viajamos,…), trajar (trajarei, trajarás, trajará, trajaremos,…), arranjar (arranjava, arranjavas, arranjava, arranjávamos,…).»

in Dicionário On-Line Português

fotografias via Restos de Colecção

De uma Ementa Real ao Saint Hubert

Maurício Barra, 14.10.13

 

 

11 de Novembro de 1903

Menu de um jantar realizado no Real Paço do Monte Estoril, com as armas reais de Portugal e Itália (Sabóia) feitos na época em que a Rainha,

a Senhora Dona Maria Pia, já viúva de S.A.R. o Senhor Dom Luís I, aí residia no Verão.

Colecção Paulo Machado de Jesus



 

Para um amador da boa mesa, a curiosidade deste cardápio com mais de um século  é analisar os produtos que o constituíam e as confecções a que eram sujeitos. Reparamos que estava escrita em francês e que incluía galinhola, que os amantes da caça consideram o rolls-royce das aves bravas. As confecções tinham todas o nome do molho que as envolvia, forte tradição francesa que permaneceu e influenciou, sobretudo a hotelaria tradicional, até ao fim da segunda guerra mundial. 

Dos pratos descritos nesta ementa há uma confecção, precisamente o da galinhola, que, apesar de rara, ainda se encontra em alguns restaurantes mais clássicos : o Saint Hubert. 

Recolhendo o nome de Saint Hubertus or Hubert (c. 656–727 A.D.), santo cristão patrono dos caçadores, é uma confecção que , obviamente, se aplica a pratos de caça. 

A sua confecção inclui invariavelmente cogumelos selvagens ou de Paris, manteiga, bagas de zimbro, maçãs cortadas em dados, ervas aromáticas e uma boa aguardente.  E natas, claro, ou não fosse uma receita francesa. 

Aplica-se a todo o tipo de caça ( excepto coelho bravo e as andarilhas orelhudas saltitantes ), confecciona-se normalmente em sautés onde, em frigideira, se salteiam as carnes previamente marinadas adicionando os ingredientes descritos. 

É bom, muito bom. 

Agora que a caça é praticamente inexistente fora do Alentejo, recomendo que apliquem esta receita em costeletas de porco cortadas à inglesa ( largura da costela ), as quais também devem ser marinadas, que poderão acompanhar com castanhas salteadas ( elas estão a vir, estamos quase no S. Martinho ) e um bom esparregado. 

Bom apetite.

Da Senhora da Graça às Mercês, ou de como assistir o divino nas alturas cultivando o profano cá por baixo.

Maurício Barra, 14.10.13

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tiveram lugar, em Almoçageme, as 245 ª Festas da Senhora da Graça. Duzentos e quarenta e cinco anos  em que a comunidade de Almoçageme comemora e comemora-se. Durante cinco dias coexistem uma festa profana de agradecimento divino, uma procissão devota que percorre toda a vila, uma festa que encerra o ano agrícola e o fim da época estival, juntando-se assim na mesma data as tradições milenares e as comemorações religiosas. Os proventos obtidos pela Festa são sempre para oferecer para fins de solidariedade definidos pela própria população.

Com a presença de toda a população e de muitos forasteiros, junta à comemoração religiosa a presença da Banda Filarmónica de Almoçageme, a Guarda de Honra dos Bombeiros Voluntários, conjuntos de baile, a banda das arruadas, o restaurante da Adega, quermesses e divertimentos para as crianças, o espectáculo de fogo-de-artifício e, para não variar, as cavalhadas, um jogo normalmente realizado por crianças e adultos dos sexo masculino, que consiste em retirar, sempre em circulação, com uma seta de madeira uma argola de uma gaiola, sem a deixar cair no chão até o jogo acabar. E a entrega da vitela ganha no sorteio das rifas.

 

A historiadora Maria Teresa Caetano, em conjunto com Joaquim Leite, produziu uma edição, completa e definitiva, sobre a origem e usos da Festa da Nossa Senhora da Graça, que têm lugar em Almoçageme desde 1758. Neste artigo apresentamos, retirado do livro, a origem desta tão antiga festividade.

« Num reconhecido júbilo pelo facto de o violento sismo do dia de Todos-Os-Santos de 1755 não ter provocado senão danos materiais, deu-se início à construção, numa terra de semeadura, de uma Igreja consagrada a Nossa Senhora da Graça [ ] a documentação subsistente esclarece que o templo " teve seo principio em o anno de 1758 feitos Com esmolas dos moradores do ditto logar, e dos nasionais delle, existentes em a Cidade de Lixbo e de outras pessoas devotas, sendo seo director, administrador, e maior de Votto Joze Gomes da Costa". Dez anos depois, celebrou-se a primeira missa no novel templo, a 15 de Agosto. E, alguns meses mais tarde, a administração da Igreja foi entregue - por Maria da Apresentação, viúva do administrador que fora "Deus servido chamalo para si á tempo que a ditta Igreja, se achava já coberta de telhado, e fechada de portas " - aos habitantes da aldeia conforme se pode ler no citado "Livro da Receita e despeza das obras de Nosa Senhora da grasa ". E a belíssima imagem da Virgem invocada foi, segundo a tradição oral, oferecida como pagamento de uma promessa de um conterrâneo que em viagem marítima, do Algarve para Lisboa, se salvou de um temporal à entrada da barra do Tejo.[]

Com a Graça da Senhora, deu-se início , ainda no séc. XVIII, numa terra aonde não acudia qualquer romagem, à festa em seu louvor : " Devesse solenizara Senhora da Graça no primeiro Domingo de Outubro Dominga Santíssimo Rozario [] O fervor mariano, espelhado nesta renovação de fé,, acabaria por ditar o abandono e sequente ruína da ermida manuelina devotada ao apóstolo André, que estava a cargo do "Ouvidor das Terras da Raynha", da qual apenas subsiste gracioso cruzeiro maneirista.

Pouco se sabe, no entanto, acerca dos primórdios dos festejos pois a - rara - documentação subsistente não é esclarecedora quanto à estrutura desta celebração mariana, nem, tão pouco, nos informa acerca de uma das mais interessantes particularidades desta que se subsume na razão de ser feita apenas por indivíduos ( recém ) casados, que, por um dois anos depois de celebrado o matrimónio, são convidados a "fazer a festa". Esta participação assumia-se - e assume-se ainda hoje - como verdadeiro "rito de passagem", porquanto a festa da Nossa Senhora da Graça era, na verdade, pela sua estrutura organizativa, a assunção da "maioridade" plena dos jovens casais. [ ] Outro aspecto a salientar prende-se com a necessidade de garantir a sua continuidade ao obter-se, ainda mesmo antes do término do evento, a formação de uma comissão para o ano seguinte. E poderá, talvez, radicar aqui uma das razões pelas quais esta festa - segundo se diz- nunca tenha ficado por fazer.

De igual modo eram formulados os convites ao juiz e à juíza da festa, por norma pessoas social e economicamente bem posicionadas, que tinham como função presidir aos festejos - em particular, à procissão -e, em contrapartida, ficavam "obrigados" a " dar uma esmola gorda". [ ] Assim, no sábado, os festeiros iam - e vão ainda - à casa do juiz entregar o pendão e a medalha e , seguidamente, à da juíza oferecer uma outra medalha. E, no Domingo, os festeiros acompanhados pela banda e por homens que transportam as gigas, forradas com " lindos lençóis ou toalhas de linho e enfeitadas com flores naturais, iam à casa do juiz e da juíza para os cumprimentar " e conduzir à Igreja para, em lugar destacado, presidirem à missa e, depois, à procissão, na qual o juiz - acompanhado pela juíza - carreava a bandeira da Senhora. As gigas eram benzidas durante a missa e dali levadas para o sítio do arraial onde se vendiam os bolos. Nesta altura, os bolos da festa "não eram comprados, eram os festeiros que levavam o trigo ao moleiro. Com a farinha moída faziam os bolos da festa e a cada fornada terminada era lançado um foguete " e aqueles que andavam nos campos, a trabalhar, "sabiam que tinham saído mais bolos".

Por este tempo a festa era " feita pelos fazendeiros, depois é que começou a ser feita pelos que andam à jorna ", de modo a que os eventuais prejuízos causados pela chuva outonal que, muitas vezes, "estraga a festa" fossem prontamente cobertos. Era também frequentes festeiros competia, para além da organização do evento, zelar pelo "ouro" da Nossa Senhora da Graça. Este "ouro" , bem como os excedentes monetários da festa, era guardado num cofre de madeira chapeado e ferrado - a burra - que era, secretamente, entregue a um dos festeiros. A burra tinha três chaves que eram distribuídas por outros tantos festeiros, garantindo-se, deste modo, que a abertura do cofre só era possível na presença daqueles elementos da comissão.»


 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CARNE DAS MERCÊS 

 

Uma das vitualhas que são parte integrante dos cardápios desta Festa é a famosa Carne das Mercês, localidade vizinha que apadrinhou um prato que é comum a toda a região saloia a ocidente de Lisboa.  Pelos dias de hoje a sua confecção anda pelas ruas da amargura : fritam a carne do porco e chama-lhe o que não lhe devem chamar. Recorro ao grande Luís Pontes e trago-vos o que lhe se oferece dizer sobre a sua verdadeira confecção.

 

A verdadeira receita da Carne das Mercês 

A Feira das Mercês, antiquíssimo vestígio do culto popular do Divino Espírito Santo, realiza-se nas duas últimas semanas de Outubro, numa quinta que foi casa do Marquês de Pombal na zona saloia, entre Rio de Mouro e o Algueirão. 

A Carne às Mercês é um dos poucos “confitados” (há mais 4 ou 5 na cozinha tradicional portuguesa, geralmente não identificados como tal) da nossa cozinha popular e não tem nada a ver com as “carnes às mercês” das tabernas e cervejarias lisboetas, essas sim carnes de porco fritas (bem ou mal) e em tudo iguais, excepto na massa de pimentão, à carne de porco alentejana (sem amêijoas). 

Bom, como parece que ninguém se lembrou de fixar a receita antiga de Carne às Mercês, eu corro o risco de ser o único a poder fazê-lo e fá-lo-ei aqui que este é um petisco bom demais para se perder. 

 

Ingredientes:

 

1kg de rabadilha de porco

 

1 colher de sopa de pimentão em pó

 

5-6 dentes de alho

 

5-6 folhas de louro

 

Sal grosso e pimenta preta

 

150g de banha de porco

 

2,5dl de vinho branco

 

2 colheres de sopa de vinagre (facultativo*)

 

 

 

Preparação:

 

Corte a carne em pedaços com a volumetria aproximada de uma noz, tempere-os, junte o vinho e o vinagre* e deixe por 24 horas (mas melhor por 48h) no frigorífico*. 

Ponha esta carne com a marinada numa assadeira ou frigideiras de barro, por cima coloque a banha e leve ao forno, regulado para 120ºC com calor por baixo, durante cerca de 4 horas. 

Durante este tempo a carne mal fervilha e a película de banha que se forma sobre a marinada impede a sua evaporação. 

Isto é essencial para que a carne vá confitando lentamente, adquirindo aquela tenrura não-desfeita que só a baixa temperatura e o tempo conferem. 

Depois destas horas é tempo de finalizar: é agora que a carne já confitada vai ser frita. Passe a temperatura para 250ºC ou, mais prático, passe a assadeira para o lume do fogão, forte, e deixe que a marinada se evapore por completo e a carne fique alourada e frita por fora, mexendo sempre. 

No final (cuidado para que os alhos não queimem) junte um golpe de vinho branco, agite para desglaçar os sucos caramelizados e evaporar o álcool e sirva acompanhado de um bom vinho e pão de Mafra.

 

Luís Pontes em Outras Comidas


Adraga, uma história com visionários, peixe, mariscos, barões e vinho.

Maurício Barra, 14.09.13

 

 

Tenho a dupla felicidade de, abaixo da minha aldeia, ter a praia da Adraga e o restaurante que lhe captou o nome. Numa tenho “a minha praia” de sempre, no outro encontro portaló sempre aberto para, ancorado e amesendado, navegar pela noite dentro em conversas infinitas. Trinta anos de uma relação que quero que vá até às bodas de ouro.

Ainda me lembro do pai da D. Suzette a comandar o velho barracão, já bem composto, onde o sabor do mar entrava em todos os pratos, acolitados por uns petiscos de ocasião que puxavam à cavaqueira ( sempre considerei o senhor Lourenço e o pai Muxacho - que também começou com a "barraca " onde hoje é a Estalagem -, pioneiros em restaurantes de praia nesta costa, os visionários num tempo em que ainda não havia marketings ).

Lembro as desgraças. Lembro o vendaval de marés que deitou abaixo um terço do restaurante, as cheias que mais tarde lhe levaram “ as ameias”, mas lembro também a determinação, o eterno retorno, revigorado, com a mesma qualidade de sempre. Lembro uma família a trabalhar arduamente todos os dias para serem sempre melhores. Merecidamente, o resultado do seu trabalho é hoje é uma referência incontornável.

Já na terceira geração, com a quarta a despontar, continua a D. Suzette a oficiar e a comandar os tachos que, no caso, são mais grelhas e frigideiras. Não vou comentar ementas nem sabores. Todos já passaram por cá e sabem o que a “casa gasta”. Por isso voltam. Voltam ao peixe de costa do dia, aos percebes, à amêijoa cristã, à sopa de peixe, aos mexilhões da Roca. E houve tempo que a lagosta também era daqui, da Roca, antes das traineiras raparem os fundos ao mar.

Pois bem, é que é que a Adraga tem a ver com vinho ? É outra história deliciosa.

O Barão Bodo Von Bruemmer, hoje com 102 anos, ao diagnosticarem-lhe um cancro há uns bons cinquenta anos, meteu-se em viajante a conhecer mundo. Veio até ao fim do caminho, o ponto mais ocidental da Europa, quando (segundo as suas próprias palavras), batendo com a cabeça num dos velhos postes de cimento a indicar “camionetas”, olha em redor e vê à sua frente uma quinta sem fabrico agrícola, quase abandonada. Decidiu comprá-la, restaura a mansão da quinta ( Quinta de Santa Maria ) e, vendo que não havia meio de morrer, inicia de raiz uma coudelaria, grande paixão da sua mulher. Por lá andou anos e anos a trotar nesse investimento, até perder o entusiasmo que os proventos não alimentavam. Como a doença não havia meio de se decidir, virou-se para o vinho. E virou-se a sério. Com o velho espírito e rigor prussiano. E as Caves de Santa Maria começaram a ser conhecidas, vinhos de produtor, autênticas pérolas que poucos conheciam ou tinham acesso.

Uma das pérolas é o Senhor da Adraga, um branco que casa na perfeição com a fresquidão do mar que encontramos na mesa do restaurante da propriamente dita.

Como o Barão está rijo e recomenda-se ( sei, porque o conheço ) e a D.Suzette está para “lavar e durar”, convido-vos a passarem por cá. E não é preciso virem com pressa. Eles também não têm pressa nenhuma.

 

 

 

Notas do Produtor

Cor: Palha brilhante com reflexos citrinos.

Aroma: Jovem, muito intenso e com complexidade. Sobressaem notas a frutos tropicais maduros, frutos arbóreos de caroço e florais.

Paladar: Ataque cremoso, acidez refrescante com bom aroma de boca.

Consumo: Deverá ser apreciado a uma temperatura entre os 08-10ºC. Óptimo como aperitivo. Acompanha pratos de carnes brancas com molhos gordos e peixes grelhados gordos.

. . . .para a Nigella . . . .

Maurício Barra, 03.08.13

 

 

Hoje o tema faz um desvio antes de chegar à "comidinha " propriamente dita.

Ver a Nigella Lawson a ser "estrafegada" pelo marido em directo perturbou qualquer homem que, por causa da voluptuosa senhora, sofre de visão dupla : olha para a cozinheira e vê uma Pin Up, olha para a Pin Up e vê uma cozinheira. Ambas bem simpáticas e com aquele toque de carinho que  transforma o mais empedernido numa esponja de banho ( esta foi boa , a da esponja de banho ).

Divorciou-se a senhora em menos de sessenta segundos, o que tranquilizou aqueles que momentaneamente ficaram preocupados com eventuais tendências sadomasoquistas de tão suave ícone. E, assegurou-nos, aos bem formados, que, a uma senhora, só se toca com uma flor. E que, senhora que é senhora, não admite a pior das traições, a da integridade física, linha a partir da qual abdica da sua dignidade.

Reconfortados, ficamos à espera dos "próximos programas". Que veremos com deleite, mesmo que os cozinhados propriamente ditos sejam por vezes colaterais à gastronomia, misturas agradáveis de sabores apropriados para colorir as refeições quotidianas das famílias de classe média do Reino Unido.

 

 

 

 

Mas, para lá deste momento funesto que a senhora atravessa, lembro-me sempre da Nigella quando, em viagem, nos hotéis escolho o pequeno almoço preferido da musa dos tachos : ovos mexidos com salmão fumado e dill. Experimentem : é realmente muito  bom.

Contudo, não quero deixar a rubrica sem uma sugestão da Nigella.

 

 

 

 

TRÊS PEIXES com MOLHO de TRÊS ERVAS

 

Os Peixes

Filetes de salmão, peixe-espada e atum

( escolha opcional, pode escolher outros )

azeite

 

O Molho

Azeite

Sumo limão

Raspa limão

Salsa picada

Alcaparras

Orégãos secos

Folha de manjericão

Sal e pimenta

 

Preparação

Misture todos os ingredientes do molho e deixe a macerar durante 15 minutos.

Frite/grelhe em pouco azeite os filetes dos três peixes, começando pelo salmão, depois o peixe-espada e finalmente o atum.

Sirva em cada prato três filetes diferentes vertendo algum molho por cima. Com o resto do mesmo tempere uma salada de diferentes alfaces para acompanhar os filetes.

 

BOM APETITE !

 

Açordas e Migas

Maurício Barra, 13.07.13

 

 

 

 

Comecemos pelas Migas.

As migas são um assunto religioso, exigem devoção, não obrigação. Num país "pãozeiro" onde, de Norte a Sul, sem esquecer Madeira e Açores, o pão é alimento preponderante - e, diga-se, de excepcional qualidade média, qualidade que a tanto abrigou as grandes superfícies a reinventar padarias para  não perderem um grosso filão de consumo que despreza o pão industrial - em diversas e saborosas composições gastronómicas. Obviamente , quem tem mais sorte é quem escapa à ditadura dos contextos fortemente urbanos. Sorte que não é difícil obter considerando que, no que ao pão diz respeito, fica invertido a qualificação do termo que diz que o país "é Lisboa e o resto é paisagem". Aqui a "paisagem" é que manda.

Mas é no Alentejo que, ao pão, dão tratamento de rei. Nas sopas. Nos ensopados. E nas migas.

Conversando com alentejanos, a explicação que dão, para além da origem pobre e rural de parte de uma gastronomia que encontrou nos sabores singelos a substituição de condutos mais ricos, está a confecção do pão tradicional alentejano, de trigo, mais popular nos tamanhos de 1/2 e um kilo, feito com fermento "inteiro" que lhe proporciona um sabor , consistência e longevidade que não tem comparação com a rápida deterioração de outros tipos de pão. Havendo pão que dure, há que o aproveitar. E as migas são uma solução superlativa.

Hoje trago-vos duas receitas, que faço há muito tempo, que estão no coração do receituário alentejano. Em vez de vos apresentar as minhas variações, prefiro deixar-vos a receita autêntica, recolhida em pesquisa local efectuada no Alentejo.

 

 

MIGAS DE ESPARGOS

 

Ingredientes:

1 molho de espargos;

3 dentes de alho;

1 folha de louro;

3 ovos;

vinagre q.b.;

pimenta q.b.;

carne da calda fresca (carne de porco temperada com sal, alho e pimenta);

3 colheres (sopa) de banha de porco;

sal q.b.;

pão alentejano (de preferência duro).

Preparação: Cortar os espargos aos pedacinhos, pôr a cozer numa panela em água temperada com sal. Entretanto, num tacho, fritar a carne com a banha de porco. Depois de frita, retirar do tacho. Quando os espargos estiverem cozidos, escorrer e esmagá-los com a ajuda de um garfo. Deitar os espargos esmagados numa pequena tigela, juntar os ovos inteiros, os pedacinhos de carne frita, o vinagre e a pimenta. Rectifica-se o tempero com um pouco de sal (se necessário) e pimenta. Bater tudo junto. A seguir, desfazer o miolo do pão e cortar as côdeas em pedacinhos. Colocar novamente o tacho na chama e fritar, em banha de carne, os dentes de alho e a folha de louro. Juntar o pão e mexer com a ajuda de uma colher de pau. De seguida, juntar o preparado dos espargos, mexer com a colher, sempre sobre chama branda, até as migas ficarem secas. As migas de espargos devem ficar secas e soltas. Este prato serve-se quente ou frio acompanhado pela carne.

 

 

MIGAS GATAS

 

Ingredientes:

uma cabeça de alho,

uma posta de bacalhau,

pão alentejano (duro),

Sal q.b.,

azeite

Preparação: Coza a posta de bacalhau depois de previamente demolhada. Enquanto isso descasque o alho e pique-o, corte o pão em pequenas fatias, muito finas.Coloque o pão já cortado numa tigela grande ou numa terrina, desfie o bacalhau e coloque em cima do pão, assim como alho já picado, o sal (a gosto) e o azeite, despois regue tudo com a água do bacalhau ainda a ferver. Com a colher de pau, envolva tudo muito bem, para que o pão fique bem ensopado.

 

 

 

 

 

A partir d'aqui, o texto não é meu. Publicado no Rerum Natura ( quem diz que a ciência é ascética não conhece cinetistas ), faço questão dar a palavra a Galopim de Carvalho, o “pai dos dinossauros”, emérito professor de geologia, amador gastronómico com obra publicada, que sobre açordas e migas diz tudo.  E estas referências devemos respeitar.

 

«Terra de grandes barrigas

onde só há gente gorda.

Às sopas chamam açorda,

à açorda chamam-lhe migas.»

 

« Foi com estas coplas que, na revista «Palhas e Moínhas», o poeta alentejano João Vasconcelos e Sá, nos começos do século passado, cantou a diferença entre os usos destas palavras no Alentejo e fora dele; hoje mais conhecidas graças à bela interpretação do seu neto, o fadista António Pinto Basto. Estreada em Évora, em 1939, esta representação musical, em dois actos, tem por tema a mais extensa província de Portugal, as suas gentes e o seu modo de estar e viver naquela época. Entre os muitos participantes, todos recrutados entre a população da cidade, figurou o meu irmão Francisco José que, logo aí, revelou as suas excepcionais qualidades como intérprete da canção.

 

No seu livro, “Para uma História da Alimentação no Alentejo” (1997), o saudoso Alfredo Saramago revelou-nos que, durante o período de ocupação romana, se comia no Alentejo uma sopa feita de ervas aromáticas, alho, azeite, pão e água bem quente. Esta confecção atravessou as culturas dos povos invasores que se seguiram, tendo sido os árabes que a fixaram e lhe deram a importância que teve entre eles e ainda tem entre nós. A ath thurda (açorda) é, pois uma herança antiga, valorizada pela presença muçulmana neste Garb al Andaluz, entre os séculos VII a XIII.

 

As açordas do pobre não têm acompanhamento. São as açordas de mão no bolso (como já escrevi noutro local) comidas pelos mais carenciados que, não tendo conduto, só precisam da mão que leva a colher à boca. São as açordas peladas, não fazem mal nem bem, é só pão e água... caem nas calças e não põem nódoas, escreveu Falcato Alves, em “Os Comeres dos Ganhões” (1994).

Mas há também, para quem pode, açordas bem temperadas, feitas com a água de cozer bacalhau, pescada ou amêijoas, e com outros produtos de grande valor nutritivo e requintado paladar, com destaque para os ditos condutos e, ainda, o ovo cozido ou escalfado, as azeitonas e, até, nalgumas famílias, os figos frescos. Açordas são quase sempre as de alho e coentros ou de poejos.

À falta destas ervas há quem as faça com pimento verde esmigalhado no almofariz (no geral, de madeira), ou graal, como nós dizemos. Mas há outras, como as de tomate e muitas mais, a ponto de o termo ser considerado sinónimo de “sopas de pão”.

 

Para nós, alentejanos, o termo migas designa um alimento à base de pão migado, embebido num caldo e a seguir esmigalhado e amassado. Esta confecção é aquilo que, em Lisboa e noutras regiões do país, se chama açorda. As ”açordas de marisco”, as boas e as menos boas, que se servem de Norte a Sul do país, são, na realidade, migas, pois correspondem melhor à etimologia e ao significado da palavra.

Temos ainda as migas de batata, também elas esmigalhadas e amassadas. Assinale-se aqui, porque nunca é demais saber, que migas e mica, o mineral, radicam no mesmo étimo latino, mica, que significa migalha.

As migas da minha mãe, trazidas de casa da mãe dela, eram quase sempre feitas no pingo do toucinho ou da carne de porco com mais gordura e no dos enchidos.

Ao contrário do ditado que reza «migas de pão, duas voltas e já estão», as nossas velhas migas as que ainda hoje se fazem no Alentejo são enroladas na sertã, continuamente, até tostarem levemente e ganharem uma casquinha estaladiça. Prato tradicional e frequente na mesa de ricos e pobres, com a diferença de que as migas de uns tinham mais carne magra e linguiça, e as de outros, mais toucinho e farinheira.»

 

Esta é boa !

Maurício Barra, 18.06.13

 

 

" A partir de agora basta usar o polegar para fazer a rolha de cortiça saltar de uma garrafa de vinho. A Helix, a solução inovadora criada pela Corticeira Amorim e pela norte-americana O-I, hoje apresentada ao mercado na Vinexpo, a maior feira de vinhos do mundo, promete revolucionar o mundo das rolhas e das embalagens de vidro combinando uma rolha de cortiça ergonomicamente desenvolvida e uma garrafa de vidro com uma rosca interior no gargalo.

Tudo isto, sem perder a sonoridade característica associada à abertura de uma garrafa de vinho.

Para garantir a performance desta solução técnica e a possibilidade da sua utilização sem grandes investimentos por parte das caves produtoras de vinhos, as duas empresas trabalharam em parceria durante quatro anos.

Sem divulgar o investimento em causa, a Corticeira Amorim admite que o projecto absorveu "parte substancial" da verba de cinco a seis milhões de euros canalizada anualmente para a sua área de investigação e desenvolvimento.

Destinada a vinhos de consumo rápido, com preços de venda ao público entre os cinco e os dez euros, a Hélix foi testada por uma dezena de caves de três países com boa receptividade, diz a Corticeira."

in Expresso

Peridz : da Taberna ao Convento

Maurício Barra, 04.05.13

  

 

 

 

A semana passada, num dos jantares que reúne “ o grupo” que gerou a sua “ amizade eterna” em Económicas ( ao qual não pode comparecer um dilecto amigo ), por sugestão do L.H.S fomos à Taberna 1330, na LX Factory. Em boa hora aceitámos a sua sugestão.

Sob o comando do chef Nuno Barros ( que adquiriu e manteve justa fama com a antecessora Taberna, localizada em Oeiras ), a Taberna 1300 oferece um espaço muito agradável, bem dimensionado, com uma atmosfera que, de algum modo, recupera a aura das antigas fábricas industriais que ali se localizavam no século passado. O serviço jovem e cordial ajustou-se ao clima trendy que os comensais figuravam.

A ementa criativa, cujo propósito é a reconstrução de receitas tradicionais com base em produtos portugueses, permitiu-nos navegar por caminhos alternativos de sabores que reconhecíamos. O agrado foi geral, desde as entradas às sobremesas, que particularmente surpreenderam todos.

Eu, tal como mais quatro dos comensais, escolhemos para prato principal as perdizes. Uma reconstrução das perdizes à “Convento de Alcântara “, de acordo com o descrito pelo chef no próprio cardápio. É sobre esta confecção que vos quero relatar o que retive da nossa apreciação.

Consiste esta versão da Taberna num caldo de perdiz, onde navegam, entre outros atavios, rolos de peito de perdiz abraçando os seus fígados e um triangulo gelatinado da redução clarificada de essência do referido caldo. Como acompanhante, apartado, luzia um croquete redondo e abastado de perdiz desfiada. O sabor intenso a perdiz, que rescendia em todo o preparo, permite assegurar que a andarilha não era de capoeira.

Para quem conhecia a verdadeira receita do “ Convento de Alcântara” foi uma relativa decepção. Não em relação à confecção em si, primorosa e com elevado grau de tecnicidade culinária, mas em relação à reconstrução de um prato que defraudou a memória do sabor esperado desta receita com mais de um século.

Por isso é que a gastronomia é o mais democrático dos prazeres. A  mesma confecção tem tantas avaliações quantas as pessoas que o saboreiam. Casa pessoa encerra em si uma matriz que amalgama todos os contextos e circunstâncias da sua vida, construindo memórias de degustação que desaguam na sua forma única de apreciar. No meu caso, no confronto entre a minha memória e a sua adaptação contemporânea, ganhou a memória. No caso do chef Nuno Barros, ganha ele todos os dias, com o seu restaurante cheio e com clientes satisfeitos. Como nós também o fomos,

 

E é precisamente em nome dessa memória que vos apresento hoje a receita original de

PERDIZES À CONVENTO DE ALCÂNTARA

 

É considerada por muitos como o único exemplo de receita portuguesa de alta cozinha. Segundo Oliveira Bello - gastrónomo e fundador, em 1933, da Sociedade Portuguesa de Gastronomia - no seu livro "Culinária Portuguesa", esta é a receita que Auguste Escoffier (1846-1935), grande chef francês, refere no seu "Guide de Culinaire". Consta que esta receita de perdiz terá sido encontrada pelos soldados de Junot, quando saquearam o convento de Alcântara em Lisboa. A Duquesa de Abrantes ( Madame Junot), tendo tido conhecimento da receita, transcreveu-a nas suas memórias, Escoffier descobriu-a e colocou-a no seu "Guide de Culinaire".

 

Ingredientes

3 perdizes

250 gr foie gras

100 gr trufas

2 garrafas vinho do Porto seco

60 gr manteiga

500 ml caldo de ave (caldo de perdiz de preferência)

sal

fatias de pão

 

Confecção

. Arranjam-se as perdizes e desossam-se com todo o cuidado, esfregam-se com sal.

. Recheiam-se com o foie gras e as trufas, partidas em pequenos pedaços, refazendo a forma original da perdiz.. Atam-se as perdizes e colocam-se em infusão (devem ficar bem cobertas) de vinho do Porto, durante 48 horas.

. Colocam-se as aves num tacho e vão a cozer no vinho da infusão, em lume brando, até ficarem tenras e com o molho reduzido e espesso.

. Depois de cozidas, colocam-se as perdizes numa caçarola untada com manteiga, sobre uma camada de trufas e regam-se com caldo de ave.

. Tapa-se bem a caçarola e vai ao forno durante 45 minutos.

. Dispõem-se as perdizes sobre fatias de pão ligeiramente fritas em manteiga e regam-se com o molho.

Servem-se quentes.

 

PS:  nunca as fiz com trufas, nunca as desossei, uma vez substitui as perdizes por pombos, e o Vinho do Porto nunca foi seco.

 

Sete meses

Maurício Barra, 11.04.13

 

 

Durante sete meses deixei a sala de jantar fechada. Em paz. Porque a minha parcimónia sobrepôs-se à minha tendência epicurista, nestes tempos de privação. Regresso agora, com calma. Porque a(s) gastromia(a) são heranças culturais que dão e são prazeres a que todos temos direito todos os dias.